Texto lido no Banquete Literário do dia 16.12.15
Capítulo 2: Alfabetização de adultos e bibliotecas populares – uma introdução[1]
Capítulo 2: Alfabetização de adultos e bibliotecas populares – uma introdução[1]
“O
mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo
educativo e a tomá-lo como um quefazer puro, em que nos engajamos a serviço da
humanidade entendida como uma abstração é o ponto de partida para compreendermos
as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática ‘astuta’ e
outra crítica.
Do
ponto de vista crítico, é tão impossível negar a natureza política do processo educativo
quanto negar o caráter educativo do ato político. Isto não significa, porém, que
a natureza política do processo educativo e o caráter educativo do ato político
esgotem a compreensão daquele processo e deste ato. Isto significa ser
impossível, de um lado, como já salientei, uma educação neutra, que se diga a
serviço da humanidade, dos seres humanos em geral; de outro, uma prática
política esvaziada de significação educativa. Neste sentido é que todo partido
político é sempre educador e, como tal, sua proposta política vai ganhando
carne ou não na relação entre os atos de denunciar e de anunciar. Mas é neste
sentido também que, tanto no caso do processo educativo quanto no do ato
político, uma das questões fundamentais seja a clareza em torno de a favor
de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, fazemos a educação
e de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemos
a atividade política.
Quanto
mais ganhamos esta clareza através da prática, tanto mais percebemos a
impossibilidade de separar o inseparável: a educação da política. Entendemos
então, facilmente, não ser possível pensar, sequer, a educação, sem que se
esteja atento à questão do poder. Não foi, por exemplo - costumo sempre dizer
-, a educação burguesa a que criou ou enformou a burguesia, mas a burguesia
que, chegando ao poder, teve o poder de sistematizar a sua educação. Os
burgueses, antes da tomada do poder, simplesmente não poderiam esperar da
aristocracia no poder que pusesse em prática a educação que lhes interessava. A
educação burguesa, por outro lado, começou a se constituir, historicamente,
muito antes mesmo da tomada do poder pela burguesia. Sua sistematização e
generalização é que só foram viáveis com a burguesia como classe dominante e
não mais contestatória.
Mas
se, do ponto de vista critico, não é possível pensar sequer a educação sem que
se pense a questão do poder; se não é possível compreender a educação como uma prática
autônoma ou neutra, isto não significa, de modo algum, que a educação sistemática
seja uma pura reprodutora da ideologia dominante. As relações entre a educação
enquanto subsistema e o sistema maior são relações dinâmicas, contraditórias e
não mecânicas. A educação reproduz a ideologia dominante, é certo, mas não faz
apenas isto. Nem mesmo em sociedades altamente modernizadas, com classes
dominantes realmente competentes e conscientes do papel da educação, ela é apenas
reprodutora da ideologia daquelas classes. As contradições que caracterizam a sociedade
como está sendo penetram a intimidade das instituições pedagógicas em que a educação
sistemática se está dando e alteram o seu papel ou o seu esforço reprodutor da
ideologia dominante.
Na
medida em que compreendemos a educação, de um lado, reproduzindo a ideologia dominante,
mas, de outro, proporcionando, independentemente da intenção de quem tem o
poder, a negação daquela ideologia (ou o seu desvelamento) pela confrontação entre
ela e a realidade (como de fato está sendo e não como o discurso oficial diz
que ela é), realidade vivida pelos educandos e pelos educadores, percebemos a inviabilidade
de uma educação neutra. A partir deste momento, falar da impossível neutralidade
da educação já não nos assusta ou intimida. É que o fato de não ser o educador
um agente neutro não significa, necessariamente, que deve ser um manipulador. A
opção realmente libertadora nem se realiza através de uma prática manipuladora
nem tampouco por meio de uma prática espontaneísta. O espontaneísmo é
licencioso, por isso irresponsável. O que temos de fazer, então, enquanto
educadoras ou educadores, é aclarar, assumindo a nossa opção, que é política, e
sermos coerentes com ela, na prática.
A
questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das exigências que
educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem muito bem que não é o discurso
o que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso. Nem sempre,
infelizmente, muitos de nós, educadoras e educadores que proclamamos uma opção
democrática, temos uma prática em coerência com o nosso discurso avançado. Daí
que o nosso discurso, incoerente com a nossa prática, vire puro palavreado. Daí
que, muitas vezes, as nossas palavras ‘inflamadas’, porém contraditadas por
nossa prática autoritária, entrem por um ouvido e saiam pelo outro - os ouvidos
das massas populares, cansadas, neste país, do descaso e do desrespeito com que
há quatrocentos e oitenta anos vêm sendo tratadas pelo arbítrio e pela arrogância
dos poderosos.”
[1] Palestra
apresentada no XI Congresso Brasileiro de biblioteconomia e Documentação,
realizado em João Pessoa em janeiro de 1982.
Paulo Freire - A Importância do Ato de Ler
Nenhum comentário:
Postar um comentário