quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Trecho do livro de Paulo Freire "Professora sim, tia não! - Cartas a quem ousa ensinar", de 1993.

“Outro testemunho que não deve faltar em nossas relações com os alunos é o da permanente disposição em favor da justiça, da liberdade, do direito de ser. A nossa entrega à defesa dos mais fracos, submetidos à exploração dos mais fortes. É importante, também, neste empenho de todos os dias, mostrar aos alunos como há boniteza na luta ética. Ética e estética se dão as mãos. Não se diga, porém, que em áreas de pobreza imensa, de carência profunda, essas coisas não podem ser feitas. As experiências que a professora Madalena F. Weffort viveu pessoalmente durante três anos numa favela de São Paulo, em que ela, mais do que em qualquer outro contexto, se tornou plenamente educadora e pedagoga, foram experiências em que isto foi possível. Em torno de suas experiências em contexto faltoso de tudo que nossa apreciação e o nosso saber de classe consideram indispensáveis, mas farto de muitos outros elementos que nosso saber de classe menospreza, ela prepara um livro. Nele, certamente, contará e analisará a estória de Carlinha de que, tendo falado em um texto meu, a reproduzo agora.

‘Rondando a escola, perambulando pelas ruas da vila, semi-nua, sujo na cara, que escondia sua beleza, alvo de zombaria das outras crianças e dos adultos também, vagava perdida e, o pior, perdida de si mesma, uma espécie de menina de ninguém.’

Um dia, disse-me Madalena, a avó da menina a procurou pedindo que recebesse a neta na escola, dizendo também que não poderia pagar a quota quase simbólica estabelecida pela direção popular da escola.

‘Não creio que haja problema com relação ao pagamento. Tenho, porém, uma exigência para poder aceitar Carlinha: que me chegue aqui limpa, banho tomado, com um mínimo de roupa. E que venha assim todos os dias e não só amanhã’, disse Madalena. A avó aceitou e prometeu que cumpriria. No dia seguinte Carlinha chegou à sala completamente mudada. Limpa, cara bonita, feições descobertas, confiante.

A limpeza, a cara livre das marcas do sujo, sublinhavam sua presença na sala. Carlinha começou a confiar nela mesma. A avó começou a acreditar também não só em Carlinha, mas nela igualmente. Carlinha se descobriu; a avó se redescobriu.

Uma apreciação ingênua diria que a intervenção da educadora teria sido pequeno-burguesa, elitista, alienada – afinal, como exigir de uma criança favelada que venha à escola de banho tomado?

Madalena, na verdade, cumpriu o seu dever de educadora progressista. Sua intervenção possibilitou à criança e à sua avó a conquista de um espaço – o de sua dignidade, no respeito dos outros. Amanhã será mais fácil a Carlinha se reconhecer também como membro de uma classe toda, a trabalhadora, em busca de melhores dias.

Sem intervenção democrática do educador ou da educadora, não há educação progressista.

Assim como foi possível à professora intervir nas questões ligadas à higiene do corpo que, por sua vez, se estendem à boniteza do corpo e à boniteza do mundo, de que resultou a descoberta de Carlinha e a redescoberta da avó, não há por que não se possa intervir nos problemas a que antes me referia.”

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