“Outro testemunho que não deve faltar em
nossas relações com os alunos é o da permanente disposição em favor da justiça,
da liberdade, do direito de ser. A nossa entrega à defesa dos mais fracos,
submetidos à exploração dos mais fortes. É importante, também, neste empenho de
todos os dias, mostrar aos alunos como há boniteza na luta ética. Ética e
estética se dão as mãos. Não se diga, porém, que em áreas de pobreza imensa, de
carência profunda, essas coisas não podem ser feitas. As experiências que a
professora Madalena F. Weffort viveu pessoalmente durante três anos numa favela
de São Paulo, em que ela, mais do que em qualquer outro contexto, se tornou
plenamente educadora e pedagoga, foram experiências em que isto foi possível.
Em torno de suas experiências em contexto faltoso de tudo que nossa apreciação
e o nosso saber de classe consideram indispensáveis, mas farto de muitos outros
elementos que nosso saber de classe menospreza, ela prepara um livro. Nele,
certamente, contará e analisará a estória de Carlinha de que, tendo falado em
um texto meu, a reproduzo agora.
‘Rondando a escola, perambulando pelas
ruas da vila, semi-nua, sujo na cara, que escondia sua beleza, alvo de zombaria
das outras crianças e dos adultos também, vagava perdida e, o pior, perdida de
si mesma, uma espécie de menina de ninguém.’
Um dia, disse-me Madalena, a avó da menina
a procurou pedindo que recebesse a neta na escola, dizendo também que não
poderia pagar a quota quase simbólica estabelecida pela direção popular da
escola.
‘Não creio que haja problema com relação
ao pagamento. Tenho, porém, uma exigência para poder aceitar Carlinha: que me
chegue aqui limpa, banho tomado, com um mínimo de roupa. E que venha assim
todos os dias e não só amanhã’, disse Madalena. A avó aceitou e prometeu que
cumpriria. No dia seguinte Carlinha chegou à sala completamente mudada. Limpa,
cara bonita, feições descobertas, confiante.
A limpeza, a cara livre das marcas do
sujo, sublinhavam sua presença na sala. Carlinha começou a confiar nela mesma.
A avó começou a acreditar também não só em Carlinha, mas nela igualmente.
Carlinha se descobriu; a avó se redescobriu.
Uma apreciação ingênua diria que a
intervenção da educadora teria sido pequeno-burguesa, elitista, alienada –
afinal, como exigir de uma criança favelada que venha à escola de banho tomado?
Madalena, na verdade, cumpriu o seu
dever de educadora progressista. Sua intervenção possibilitou à criança e à sua
avó a conquista de um espaço – o de sua dignidade, no respeito dos outros.
Amanhã será mais fácil a Carlinha se reconhecer também como membro de uma
classe toda, a trabalhadora, em busca de melhores dias.
Sem intervenção democrática do educador
ou da educadora, não há educação progressista.
Assim como foi possível à professora
intervir nas questões ligadas à higiene do corpo que, por sua vez, se estendem
à boniteza do corpo e à boniteza do mundo, de que resultou a descoberta de
Carlinha e a redescoberta da avó, não há por que não se possa intervir nos
problemas a que antes me referia.”
Boa noite . esse texto é fragmento de Paulo Freire ?
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