quarta-feira, 15 de julho de 2015

Texto e vídeo do Banquete Literário do dia 08.07.15.

Documentário "Paulo Freire Contemporâneo".

Trecho do livro de Paulo Freire “Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido”, 1992.


“Me lembro agora de uma visita que fiz, com um companheiro chileno, a um assentamento da reforma agrária, algumas horas distante de Santiago. Funcionavam à tardinha vários ‘círculos de cultura’ e fomos para acompanhar o processo de leitura da palavra e de re-leitura do mundo. No segundo ou terceiro círculo a que chegamos, senti um forte desejo de tentar um diálogo com o grupo de camponeses. De modo geral evitava fazê-la por causa da língua. Temia que meu “castanhês” prejudicasse o bom andamento dos trabalhos. Naquela tarde, resolvi deixar de lado a preocupação e, pedindo licença ao educador que coordenava a discussão do grupo, perguntei a este se aceitava uma conversa comigo.

Depois da aceitação, começamos um diálogo vivo, com perguntas e respostas de mim e deles a que, porém, se seguiu, rápido, um silêncio desconcertante. Eu também fiquei silencioso. Dentro do silêncio, recordava experiências anteriores no Nordeste brasileiro e adivinhava o que aconteceria. Eu sabia e esperava que, de repente, um deles, rompendo o silêncio, falaria em seu nome e no de seus companheiros. Eu sabia até o teor de seu discurso. Por isso, a minha espera no meu silêncio deve ter sido menos sofrida do que para eles estava sendo ouvir o silêncio mesmo.

‘Desculpe, senhor’, disse um deles, ‘que estivéssemos falando. O senhor é que podia falar porque o senhor é que sabe. Nós, não’.

Quantas vezes escutara esse discurso em Pernambuco e não só nas zonas rurais, mas no Recife também. E foi à custa de ouvir discursos assim que aprendi que, para o(a) educador(a) progressista não há outro caminho senão assunto o ‘momento’ do educando, partir de seu ‘aqui’ e de seu ‘agora’, somente como ultrapassa, em termos críticos, com ele, sua ‘ingenuidade’. Não faz mal repetir que respeitar sua ingenuidade, sem sorrisos irônicos ou perguntas maldosas, não significa dever o educador se acomodar a seu nível de leitura do mundo.

O que não teria sentido era que eu ‘enchesse’ o silêncio do grupo de camponeses com minha palavra, reforçando assim a ideologia que já haviam explicitado. O que eu teria de fazer era partir da aceitação de alguma coisa dita no discurso do camponês e, problematizando-os, trazê-los ao diálogo de novo. Não teria sentido, por outro lado, após ter ouvido o que disse o camponês, desculpando-se porque haviam falado quando eu é que poderia fazê-la, porque sabia, se eu lhes tivesse feito uma preleção, com ares doutorais, sobre a ‘ideologia do poder e o poder da ideologia’.

(...)

‘Muito bem’, disse em resposta à intervenção do camponês. ‘Aceito que eu sei e vocês não sabem. De qualquer forma, gostaria de lhes propor um jogo que, para funcionar bem, exige de nós absoluta lealdade. Vou dividir o quadro-negro em dois pedaços, em que irei registrando, do meu lado e do lado de vocês, os gols que faremos eu, em vocês; vocês, em mim. O jogo consiste em cada um perguntar algo ao outro. Se o perguntado não sabe responder, é gol do perguntador. Começarei o jogo fazendo uma primeira pergunta a vocês’. A essa altura, precisamente porque assumira o ‘momento’ do grupo, o clima era mais vivo do que quando começáramos, antes do silêncio.

Primeira pergunta:

- Que significa maiêutica socrática?

Gargalhada geral e eu registrei o primeiro gol.

- Agora cabe a vocês fazer a pergunta a mim – disse.

Houve uns cochichos e um deles lançou a questão:

- Que é curva de nível?

Não soube responder. Registrei um a um.

- Qual a importância de Hegel no pensamento de Marx?

Dois a um.

- Para que serve a calagem do solo?

Dois a dois.

- Que é um verbo intransitivo?

Três a dois.

- Que relação há entre curva de nível e erosão?

Três a três.

- O que é adubação verde?

Quatro a quatro.

Assim, sucessivamente, até chegarmos a dez. Ao me despedir deles lhes fiz uma sugestão: ‘Pensem no que houve esta tarde aqui. Vocês começaram discutindo muito bem comigo. Em certo momento ficaram silenciosos e disseram que só eu poderia falar porque só eu sabia e vocês não. Fizemos um jogo sobre saberes e empatamos dez a dez. Eu sabia dez coisas que vocês não sabiam e vocês sabiam dez coisas que eu não sabia. Pensem sobre isto’”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário