Documentário "Paulo Freire Contemporâneo".
Trecho do livro de Paulo Freire “Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido”, 1992.
“Me
lembro agora de uma visita que fiz, com um companheiro chileno, a um
assentamento da reforma agrária, algumas horas distante de Santiago.
Funcionavam à tardinha vários ‘círculos de cultura’ e fomos para acompanhar o
processo de leitura da palavra e de re-leitura do mundo. No segundo ou terceiro
círculo a que chegamos, senti um forte desejo de tentar um diálogo com o grupo
de camponeses. De modo geral evitava fazê-la por causa da língua. Temia que meu
“castanhês” prejudicasse o bom andamento dos trabalhos. Naquela tarde, resolvi
deixar de lado a preocupação e, pedindo licença ao educador que coordenava a
discussão do grupo, perguntei a este se aceitava uma conversa comigo.
Depois
da aceitação, começamos um diálogo vivo, com perguntas e respostas de mim e
deles a que, porém, se seguiu, rápido, um silêncio desconcertante. Eu também
fiquei silencioso. Dentro do silêncio, recordava experiências anteriores no
Nordeste brasileiro e adivinhava o que aconteceria. Eu sabia e esperava que, de
repente, um deles, rompendo o silêncio, falaria em seu nome e no de seus
companheiros. Eu sabia até o teor de seu discurso. Por isso, a minha espera no
meu silêncio deve ter sido menos sofrida do que para eles estava sendo ouvir o
silêncio mesmo.
‘Desculpe,
senhor’, disse um deles, ‘que estivéssemos falando. O senhor é que podia falar
porque o senhor é que sabe. Nós, não’.
Quantas
vezes escutara esse discurso em Pernambuco e não só nas zonas rurais, mas no
Recife também. E foi à custa de ouvir discursos assim que aprendi que, para
o(a) educador(a) progressista não há outro caminho senão assunto o ‘momento’ do
educando, partir de seu ‘aqui’ e de seu ‘agora’, somente como ultrapassa, em
termos críticos, com ele, sua ‘ingenuidade’. Não faz mal repetir que respeitar
sua ingenuidade, sem sorrisos irônicos ou perguntas maldosas, não significa
dever o educador se acomodar a seu nível de leitura do mundo.
O
que não teria sentido era que eu ‘enchesse’ o silêncio do grupo de camponeses
com minha palavra, reforçando assim a ideologia que já haviam explicitado. O
que eu teria de fazer era partir da aceitação de alguma coisa dita no discurso
do camponês e, problematizando-os, trazê-los ao diálogo de novo. Não teria
sentido, por outro lado, após ter ouvido o que disse o camponês, desculpando-se
porque haviam falado quando eu é que poderia fazê-la, porque sabia, se eu lhes
tivesse feito uma preleção, com ares doutorais, sobre a ‘ideologia do poder e o
poder da ideologia’.
(...)
‘Muito
bem’, disse em resposta à intervenção do camponês. ‘Aceito que eu sei e vocês
não sabem. De qualquer forma, gostaria de lhes propor um jogo que, para
funcionar bem, exige de nós absoluta lealdade. Vou dividir o quadro-negro em
dois pedaços, em que irei registrando, do meu lado e do lado de vocês, os gols
que faremos eu, em vocês; vocês, em mim. O jogo consiste em cada um perguntar
algo ao outro. Se o perguntado não sabe responder, é gol do perguntador.
Começarei o jogo fazendo uma primeira pergunta a vocês’. A essa altura,
precisamente porque assumira o ‘momento’ do grupo, o clima era mais vivo do que
quando começáramos, antes do silêncio.
Primeira
pergunta:
-
Que significa maiêutica socrática?
Gargalhada
geral e eu registrei o primeiro gol.
-
Agora cabe a vocês fazer a pergunta a mim – disse.
Houve
uns cochichos e um deles lançou a questão:
-
Que é curva de nível?
Não
soube responder. Registrei um a um.
-
Qual a importância de Hegel no pensamento de Marx?
Dois
a um.
-
Para que serve a calagem do solo?
Dois
a dois.
-
Que é um verbo intransitivo?
Três
a dois.
-
Que relação há entre curva de nível e erosão?
Três
a três.
-
O que é adubação verde?
Quatro
a quatro.
Assim,
sucessivamente, até chegarmos a dez. Ao me despedir deles lhes fiz uma
sugestão: ‘Pensem no que houve esta tarde aqui. Vocês começaram discutindo
muito bem comigo. Em certo momento ficaram silenciosos e disseram que só eu
poderia falar porque só eu sabia e vocês não. Fizemos um jogo sobre saberes e
empatamos dez a dez. Eu sabia dez coisas que vocês não sabiam e vocês sabiam
dez coisas que eu não sabia. Pensem sobre isto’”.
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