Trecho do livro
de Paulo Freire “Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido”, 1992.
“Entre as responsabilidades que, para
mim, o escrever propõe, para não dizer impõe, há uma que sempre assumo. A de,
já vivendo enquanto escrevo a coerência entre o escrevendo-se e o dito, o
feito, o fazendo-se, intensificar a necessidade desta coerência ao longo da
existência. A coerência não é, porém, imobilizante. Posso, no processo de
agir-pensar, falar-escrever, mudar de posição. Minha coerência assim, tão
necessária quanto antes, se faz com novos parâmetros. O impossível para mim é a
falta de coerência, mesmo reconhecendo a impossibilidade de uma coerência
absoluta. No fundo, esta qualidade ou esta virtude, a coerência, demanda de nós
a inserção num permanente processo de busca, exige de nós paciência e
humildade, virtudes também, no trato com os outros. E às vezes nos achamos, por
n razões, carentes dessas virtudes,
fundamentais ao exercício da outra, a coerência.
Nesta fase da retomada da Pedagogia, irei apanhando aspectos do
livro que tenham ou não provocado críticas ao longo desses anos, no sentido de
explicar-me melhor, de clarear ângulos, de afirmar e de reafirmar posições.
Falar um pouco da linguagem, do gosto
das metáforas, da marca machista com que escrevi a Pedagogia do Oprimido e, antes dela, Educação como prática de Liberdade, me parece não só importante mas
necessário.
Começarei exatamente pela linguagem
machista que marca todo o livro e de minha dívida a um sem-número de mulheres
norte-americanas que, de diferentes partes dos Estados Unidos, me escreveu, entre
fins de 1970 e começos de 1971, alguns meses depois que saiu a primeira edição
do livro em Nova York. Era como se elas tivessem combinado a remessa de suas
cartas críticas que me foram chegando às mãos em Genebra durante dois a três
meses, quase sem interrupção.
De modo geral, comentando o livro, o que
lhes parecia positivo nele e a contribuição que lhes trazia à sua luta,
falavam, invariavelmente, do que consideravam em mim uma grande contradição. É
que, diziam elas, com suas palavras, discutindo a opressão, a libertação,
criticando, com justa indignação, as estruturas opressoras, eu usava, porém,
uma linguagem machista, portanto discriminatória, em que não havia lugar para
as mulheres. Quase todas as que escreveram citavam um trecho ou outro do livro,
como o que agora, como exemplo, escolho eu mesmo: ‘Desta forma, aprofundando a
tomada de consciência da situação, os homens se ‘apropriam’ dela como realidade
histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles’. E me
perguntavam: ‘Por que não, também, as mulheres?’.
Me lembro como se fosse agora que
estivesse lendo as duas ou três primeiras cartas que recebi, de como,
condicionado pela ideologia autoritária, machista, reagi. E é importante
salientar que, estando nos fins de 1970 e começos de 1971, eu já havia vivido
intensamente a experiência da luta política, já tinha cinco a seis anos de
exílio, já havia lido um mundo de obras sérias, mas, ao ler as primeiras
críticas que me chegavam, ainda me disse ou me repeti o ensinado na minha
meninice: ‘Ora, quando falo homem, a mulher necessariamente está incluída’. Em
certo momento de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim
mesmo, a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da
verdade que havia na afirmação: ‘Quando falo homem, a mulher está incluída’. E
por que os homens não se acham incluídos quando dizemos ‘As mulheres estão
decididas a mudar o mundo’? Nenhum homem se acharia incluído no discurso de
nenhum orador ou no texto de nenhum autor que escrevesse: ‘As mulheres estão
decididas a mudar o mundo’. Da mesma forma como se espantam (os homens) quando
a um auditório quase totalmente feminino, com dois ou três homens apenas, digo:
‘Todas vocês deveriam’ etc. Para os homens presentes ou eu não conheço a sintaxe
da língua portuguesa ou estou procurando ‘brincar’ com eles. O impossível é que
se pensem incluídos no meu discurso. Como explicar, a não ser ideologicamente,
a regra segundo a qual se há duzentas mulheres numa sala e só um homem devo
dizer: ‘Eles todos são trabalhadores dedicados’?. Isto não é, na verdade, um
problema gramatical mas ideológico.
Neste sentido é que explicitei no começo
destes comentários o meu débito àquelas mulheres, cujas cartas infelizmente
perdi também, por me terem feito ver o quanto a linguagem tem de ideologia.
Escrevi então, a todas, uma a uma,
acusando suas cartas e agradecendo a excelente ajuda que me haviam dado. Daquela
data até hoje me refiro sempre a mulher e
homem ou seres humanos. Prefiro,
às vezes, enfeiar a frase explicitando, contudo, minha recusa à linguagem
machista.
Agora, ao escrever esta Pedagogia da Esperança, em que repenso a
alma e o corpo da Pedagogia do Oprimido,
solicitarei das editoras que superem a sua linguagem machista. E não se diga
que este é um problema menor porque, na verdade é um problema maior. Não se
diga que, sendo fundamental a mudança do mundo malvado, sua recriação, no
sentido de fazê-lo menos perverso, a discussão em torno da superação da fala
machista é de menor importância, sobretudo porque mulher não é classe social.
A discriminação da mulher, expressada e
feita pelo discurso machista e encarnada em práticas concretas é uma forma
colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer posição
progressista, de mulher ou de homem, pouco importa.
A recusa à ideologia machista, que
implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível
em favor da mudança do mundo. Por isso mesmo, ao escrever ou falar uma
linguagem não mais colonial eu o faço não para agradar a mulheres ou desagradar
homens, mas para ser coerente com minha opção por aquele mundo menos malvado de
que falei antes. Da mesma forma como não escrevi o livro que ora revivo, para
ser simpático aos oprimidos como indivíduos e como classe e simplesmente
fustigar os opressores como indivíduos e como classe também. Escrevi o livro
como tarefa política, que entendi dever cumprir.
Não é puro idealismo, acrescente-se, não
esperar que o mundo mude radicalmente para que se vá mudando a linguagem. Mudar
a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A relação entre
linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória.
É claro que a superação do discurso machista, como a superação de qualquer
discurso autoritário, exige ou nos coloca a necessidade de, concomitantemente
com o novo discurso, democrático, antidiscriminatório, nos engajarmos em
práticas também democráticas.
A Pedagogia Libertadora de Paulo Freire.
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