quinta-feira, 16 de julho de 2015

Texto e vídeo do Banquete Literário do dia 15.07.15.



Trecho do livro de Paulo Freire “Pedagogia da Esperança – um reencontro com a Pedagogia do Oprimido”, 1992.



“Entre as responsabilidades que, para mim, o escrever propõe, para não dizer impõe, há uma que sempre assumo. A de, já vivendo enquanto escrevo a coerência entre o escrevendo-se e o dito, o feito, o fazendo-se, intensificar a necessidade desta coerência ao longo da existência. A coerência não é, porém, imobilizante. Posso, no processo de agir-pensar, falar-escrever, mudar de posição. Minha coerência assim, tão necessária quanto antes, se faz com novos parâmetros. O impossível para mim é a falta de coerência, mesmo reconhecendo a impossibilidade de uma coerência absoluta. No fundo, esta qualidade ou esta virtude, a coerência, demanda de nós a inserção num permanente processo de busca, exige de nós paciência e humildade, virtudes também, no trato com os outros. E às vezes nos achamos, por n razões, carentes dessas virtudes, fundamentais ao exercício da outra, a coerência.

Nesta fase da retomada da Pedagogia, irei apanhando aspectos do livro que tenham ou não provocado críticas ao longo desses anos, no sentido de explicar-me melhor, de clarear ângulos, de afirmar e de reafirmar posições.

Falar um pouco da linguagem, do gosto das metáforas, da marca machista com que escrevi a Pedagogia do Oprimido e, antes dela, Educação como prática de Liberdade, me parece não só importante mas necessário.

Começarei exatamente pela linguagem machista que marca todo o livro e de minha dívida a um sem-número de mulheres norte-americanas que, de diferentes partes dos Estados Unidos, me escreveu, entre fins de 1970 e começos de 1971, alguns meses depois que saiu a primeira edição do livro em Nova York. Era como se elas tivessem combinado a remessa de suas cartas críticas que me foram chegando às mãos em Genebra durante dois a três meses, quase sem interrupção.

De modo geral, comentando o livro, o que lhes parecia positivo nele e a contribuição que lhes trazia à sua luta, falavam, invariavelmente, do que consideravam em mim uma grande contradição. É que, diziam elas, com suas palavras, discutindo a opressão, a libertação, criticando, com justa indignação, as estruturas opressoras, eu usava, porém, uma linguagem machista, portanto discriminatória, em que não havia lugar para as mulheres. Quase todas as que escreveram citavam um trecho ou outro do livro, como o que agora, como exemplo, escolho eu mesmo: ‘Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se ‘apropriam’ dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por eles’. E me perguntavam: ‘Por que não, também, as mulheres?’.

Me lembro como se fosse agora que estivesse lendo as duas ou três primeiras cartas que recebi, de como, condicionado pela ideologia autoritária, machista, reagi. E é importante salientar que, estando nos fins de 1970 e começos de 1971, eu já havia vivido intensamente a experiência da luta política, já tinha cinco a seis anos de exílio, já havia lido um mundo de obras sérias, mas, ao ler as primeiras críticas que me chegavam, ainda me disse ou me repeti o ensinado na minha meninice: ‘Ora, quando falo homem, a mulher necessariamente está incluída’. Em certo momento de minhas tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo, a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade que havia na afirmação: ‘Quando falo homem, a mulher está incluída’. E por que os homens não se acham incluídos quando dizemos ‘As mulheres estão decididas a mudar o mundo’? Nenhum homem se acharia incluído no discurso de nenhum orador ou no texto de nenhum autor que escrevesse: ‘As mulheres estão decididas a mudar o mundo’. Da mesma forma como se espantam (os homens) quando a um auditório quase totalmente feminino, com dois ou três homens apenas, digo: ‘Todas vocês deveriam’ etc. Para os homens presentes ou eu não conheço a sintaxe da língua portuguesa ou estou procurando ‘brincar’ com eles. O impossível é que se pensem incluídos no meu discurso. Como explicar, a não ser ideologicamente, a regra segundo a qual se há duzentas mulheres numa sala e só um homem devo dizer: ‘Eles todos são trabalhadores dedicados’?. Isto não é, na verdade, um problema gramatical mas ideológico.

Neste sentido é que explicitei no começo destes comentários o meu débito àquelas mulheres, cujas cartas infelizmente perdi também, por me terem feito ver o quanto a linguagem tem de ideologia.

Escrevi então, a todas, uma a uma, acusando suas cartas e agradecendo a excelente ajuda que me haviam dado. Daquela data até hoje me refiro sempre a mulher e homem ou seres humanos. Prefiro, às vezes, enfeiar a frase explicitando, contudo, minha recusa à linguagem machista.

Agora, ao escrever esta Pedagogia da Esperança, em que repenso a alma e o corpo da Pedagogia do Oprimido, solicitarei das editoras que superem a sua linguagem machista. E não se diga que este é um problema menor porque, na verdade é um problema maior. Não se diga que, sendo fundamental a mudança do mundo malvado, sua recriação, no sentido de fazê-lo menos perverso, a discussão em torno da superação da fala machista é de menor importância, sobretudo porque mulher não é classe social.

A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso machista e encarnada em práticas concretas é uma forma colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer posição progressista, de mulher ou de homem, pouco importa.

A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo. Por isso mesmo, ao escrever ou falar uma linguagem não mais colonial eu o faço não para agradar a mulheres ou desagradar homens, mas para ser coerente com minha opção por aquele mundo menos malvado de que falei antes. Da mesma forma como não escrevi o livro que ora revivo, para ser simpático aos oprimidos como indivíduos e como classe e simplesmente fustigar os opressores como indivíduos e como classe também. Escrevi o livro como tarefa política, que entendi dever cumprir.

Não é puro idealismo, acrescente-se, não esperar que o mundo mude radicalmente para que se vá mudando a linguagem. Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A relação entre linguagem-pensamento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória. É claro que a superação do discurso machista, como a superação de qualquer discurso autoritário, exige ou nos coloca a necessidade de, concomitantemente com o novo discurso, democrático, antidiscriminatório, nos engajarmos em práticas também democráticas.

            O que não é possível é simplesmente fazer o discurso democrático, antidiscriminatório e ter uma prática colonial.”

A Pedagogia Libertadora de Paulo Freire.

Nenhum comentário:

Postar um comentário